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Venda Online de Medicamentos Sem Receita Médica: TJUE Clarifica Regras e Condicionamentos

  1. ANTECEDENTES PROCESSUAIS  

A 30 de setembro de 2021, deu entrada no Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial endereçado pela Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França), inserido no processo judicial que opõe a Doctipharma SAS e Union des Groupements de pharmaciens d’officine (UDGPO) (Processo C-606/21).  

Em causa estava a venda em páginas web da Doctipharma de produtos farmacêuticos e medicamentos não sujeitos a receita médica: o utilizador da Internet preenchia um formulário que lhe permitia criar uma conta de cliente, facultando informações pessoais que possibilitariam a sua identificação, e podia escolher, de entre um catálogo pré-registado de medicamentos, aqueles que pretendia comprar. Depois de efetuada e paga, a encomenda seria endereçada aos farmacêuticos, e entregue no local previamente estabelecido. 

A Union des Groupements de pharmaciens d’officine (a seguir «UDGPO») sustenta que este procedimento de venda em linha que é oferecido às farmácias pela sociedade Doctipharma permite que esta última participe no comércio eletrónico de medicamentos sem ter o estatuto de farmacêutico e que, por isso, são atividades de venda ilícitas, pedindo a respetiva cessação.  

Intentada uma ação judicial, por Acórdão de 31 de maio de 2016, o Tribunal de Commerce de Nanterre declarou ilícita a venda de medicamentos nesses termos e ordenou que a sociedade Doctipharma cessasse a atividade de comércio eletrónico de medicamentos no seu website

A sociedade Doctipharma interpôs recurso na Cour d’appel de Versailles, que revogou a referida decisão por Acórdão de 12 de dezembro de 2017 por considerar o sítio Internet lícito na medida em que as encomendas de medicamentos dos utilizadores da Internet, que apenas transitam pela plataforma criada pela sociedade Doctipharma como suporte técnico das páginas Internet dos farmacêuticos, são recebidas pelos próprios farmacêuticos, sem que aquela sociedade intervenha de qualquer outra forma no processamento das encomendas. 

Por Acórdão de 19 de junho de 2019, a Cour de Cassation anulou o acórdão da Cour d’appel de Versailles e remeteu o processo à Cour d’appel de Paris. Por declaração de 19 de agosto de 2019, submeteu este tribunal um conjunto de questões prejudiciais à apreciação do TJUE a propósito do litígio. 

  1. QUESTÕES PREJUDICIAIS 

O reenvio prejudicial (artigo 267.º TFUE) permite que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, enquanto órgãos jurisdicionais comunitários, no âmbito de um litígio que lhes tenha sido submetido, interroguem o Tribunal de Justiça sobre a interpretação do Direito da União ou sobre a validade de um ato da União. Este mecanismo de diálogo não habilita o TJUE a decidir sobre o litígio nacional, função que será desempenhada pelo tribunal nacional.  

Assim sendo, remeteu a Cour d’appel de Paris as seguintes questões ao Tribunal de Justiça: 

  • A atividade da sociedade Doctipharma realizada no e a partir do seu sítio Internet deve ser qualificada de «serviço da sociedade da informação» [1] na aceção da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998?  
  • Nesse caso, a atividade da sociedade Doctipharma está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 85.°-C da Diretiva 2001/83/CE de 6 de novembro de 2001, posteriormente alterada por uma Diretiva a 8 de junho de 2011 [2]?  
  • Deve o artigo 85.°-C da Diretiva de 6 de novembro de 2001 ser interpretado no sentido de que a proibição, resultante da interpretação dos artigos L. 5125-25 [3] e L. 5125-264 do Code de la santé publique, da atividade da sociedade Doctipharma, realizada no e a partir do seu sítio Internet, constitui uma restrição justificada à luz da proteção da saúde pública?  
  • Se não, deve o artigo 85.°-C da Diretiva de 6 de novembro de 2011 ser interpretado no sentido de que autoriza a atividade da sociedade Doctipharma, tal como descrita no presente acórdão, realizada no e a partir do seu sítio Internet?  
  • Neste caso, é a proibição da atividade da sociedade Doctipharma justificada à luz da proteção da saúde pública na aceção do artigo 85.°-C da Diretiva de 6 de novembro de 2001, alterada pela Diretiva de 8 de junho de 2011?  
  • Se não for esse o caso, deve o artigo 85.°-C da Diretiva de 6 de novembro de 2001 ser interpretado no sentido de que autoriza a atividade de «serviço da sociedade da informação» oferecida pela sociedade Doctipharma
  1. DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 

Nas respostas às questões prejudiciais, esclareceu o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 29 de fevereiro de 2024 (Processo C-606/21), que:  

  • Há que responder à primeira questão que o artigo 1.°, ponto 2, da Diretiva 98/34 e o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2015/1535 devem ser interpretados no sentido de que um serviço prestado num sítio Internet que consiste em pôr farmacêuticos e clientes em contacto para efeitos da venda, a partir dos sítios Internet de farmácias de oficina que subscreveram esse serviço, de medicamentos não sujeitos a receita médica está abrangido pelo conceito de «serviço da sociedade da informação», na aceção destas disposições. 
  • O artigo 85.°‑C da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Diretiva 2011/62/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011, deve ser interpretado no sentido de que: os Estados‑Membros podem, com fundamento nesta disposição, proibir a prestação de um serviço que consiste em pôr em contacto, através de um sítio Internet, farmacêuticos e clientes para efeitos da venda, a partir dos sítios Internet de farmácias de oficina que subscreveram esse serviço, de medicamentos não sujeitos a receita médica, se se verificar, tendo em conta as características do referido serviço, que o próprio prestador do mesmo serviço procede à venda desses medicamentos sem estar autorizado ou habilitado pela legislação do Estado‑Membro em cujo território está estabelecido. Ou seja, deve fazer-se uma distinção
  • Quando se considere que o prestador que não tem a qualidade de farmacêutico procede, ele próprio, à venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, o Estado-Membro em cujo território esse prestador está estabelecido pode proibir a prestação deste serviço.  
  • Em contrapartida, quando o prestador em causa se limite, através de uma prestação própria e distinta da venda, a pôr vendedores e clientes em contacto, os Estados-Membros não podem proibir este serviço pelo facto de a sociedade em causa participar no comércio eletrónico de venda de medicamentos sem ter a qualidade de farmacêutico. 

Sumaria o Tribunal que “embora os Estados-Membros tenham competência exclusiva para definir quais são as pessoas autorizadas ou habilitadas a vender à distância ao público através de serviços da sociedade da informação medicamentos não sujeitos a receita médica, estes devem também assegurar que os medicamentos sejam oferecidos para venda à distância ao público através de serviços da sociedade da informação, pelo que não podem proibir esse serviço para os medicamentos não sujeitos a receita médica”. 

Notas de Rodapé:

[1] Isto é, «qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via electrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços». 

[2] Dispõe o artigo 85.º-C da Diretiva que «sem prejuízo da legislação nacional que proíbe a oferta para venda à distância de medicamentos ao público através de serviços da sociedade da informação, os Estados-Membros asseguram que os medicamentos sejam oferecidos para venda à distância através de serviços da sociedade da informação, tal como definidos na Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação», mediante algumas condições. 

[3] Dispõe este artigo que «Os farmacêuticos estão proibidos de receber encomendas de medicamentos e outros produtos ou objetos referidos no artigo L. 4211‑1 recorrendo de forma habitual a intermediários, bem como de comercializar e distribuir ao domicílio os medicamentos, produtos ou objetos acima referidos que tenham sido encomendados deste modo.». 

[4] Dispõe este artigo que «É proibida a venda ao público de todos os medicamentos, produtos e objetos referidos no artigo L. 4211‑1 através de agências comissionistas, alianças de compra ou estabelecimentos detidos ou administrados por pessoas que não possuam um dos diplomas, certificados ou outros títulos mencionados no artigo L. 4221‑1.» 

Artigo Redigido por Martina Pereira Gonçalves

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